Fuzilamento no Rio de Janeiro. Racismo?

Paulo Cruz
6 min readApr 10, 2019

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Foto: Fabio Teixeira/AP

“Não me peças sorrisos

que ainda transpiro

os ais

dos feridos nas batalhas

Não me exijas glórias

que sou eu o soldado desconhecido

da Humanidade”.

(Agostinho Neto, Certeza)

Evidente que não há o que tergiversar aqui: foi um extermínio, um assassinato brutal, por fuzilamento, provocado por militares irresponsáveis que não sabem fazer o seu trabalho — como tantos maus profissionais que existem por aí. O problema é que há profissões em que o profissionalismo — o cumprimento do trabalho com seriedade — não pode ser um atributo relativo; a excelência absoluta tem de ser a norma. Há profissões de risco, nas quais as falhas podem causar grandes males. Saúde e segurança, provavelmente, são as áreas mais sensíveis nesse caso; um erro pode ser fatal. Minha profissão, a docência, pode causar grandes estragos, mas a longo prazo. Um professor que ensina mal pode gerar um policial que trabalha mal; um policial que trabalha mal pode matar um professor, um músico.

Evaldo do Santos Rosa foi brutalmente assassinado quando ia a uma festa com seus familiares. Um filho de 7 anos — que, graças a Deus, sobreviveu — presenciou tudo. Outras pessoas foram baleadas, dentre elas, seu sogro. Não há desculpa para essa terrível ação do exército. Sua esposa saiu do carro, com as mãos para cima, enquanto os militares ainda atiravam, mas eles não pararam. O horror!

Racismo? Bom, aí é preciso pensar um pouco. Num país de maioria negra (fazendo a conta do IBGE, somos 54%), no qual, infelizmente, a maioria esmagadora dessa população ainda vive nas periferias e nos locais mais violentos, aumenta a probabilidade dela se tornar alvo fácil de policiais e de bandidos. Um agravante é que a maioria dos criminosos também é negra, aumentando, portanto, o número de suspeitos, encarcerados e mortos com estas características.

Porem, há que se fazer uma ressalva: tal constatação tem sido usada, principalmente pelos aficcionados pela ideologia da luta de classes, fatalisticamente; como se o negro tendesse à criminalidade por sua condição social. Mas não é. No entanto, o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915–1982), um dos maiores intelectuais desse país e um ferrenho ativista do movimento negro, já havia percebido esse erro na década de 1950. Vejam:

A maior freqüência de indivíduos pigmentados na estatística de certos crimes decorre necessariamente de sua predominância em determinadas camadas sociais. Assinala um fenômeno quantitativo e não qualitativo. Por outro lado, careceria de base objetiva a afirmação de que o negro no Brasil manifestasse tendências específicas essenciais na vida associativa, na vida conjugal, na vida profissional, na vida moral, na utilização de processos de competição econômica e política. O fato é que o negro se comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e estrato social. (Guerreiro Ramos, O problema do negro na sociologia brasileira. Grifo meu)

O problema é a influência e a vulnerabilidade que ocorrem em determinadas regiões. A esse respeito, gosto sempre se repetir o verso da música Mágico de Oz, do Racionais: “ele se espelha em quem tá mais perto”.

Agora, não há qualquer evidência para afirmarmos que os policiais que assassinaram Evaldo tenham agido por racismo. Inclusive, sua esposa, num depoimento à Agência Brasil, disse: “Eu coloquei a mão na cabeça e disse: ‘Moço, socorre meu esposo’. Eles não fizeram nada. Ficaram de deboche. Tem um morenoque ficou de deboche e rindo” (grifo meu). O que seria esse “moreno”? Provavelmente um militar negro. Um militar negro pode ser racista? Até pode, mas sua atitude, ainda que detestável, não prova isso. Quando a polícia diz que confundiu o carro — e, consequentemente, seus ocupantes — com suspeitos, não há por que duvidar de suas palavras, pois a cor da pele, por tudo o que eu disse acima, é um elemento quase indissociável da maioria dos suspeitos — e criminosos. É lamentável que ainda seja assim, mas é. Some-se a isso o nosso, ainda, grave defeito de imaginação moral, que nos leva a ver a população negra com certa desconfiança em relação às suas qualidades, seu caráter e sua capacidade de prosperar, o que torna tudo muito mais complicado.

Guerreiro Ramos também diz, muito acertadamente, no mesmo ensaio, que o branco brasileiro é “sôfrego de identificação com o padrão estético europeu”. Apesar de ter sido dito há tanto tempo, novamente creio que seja atualíssimo. Toda aquela mania de descendência que insistimos em sustentar, e o modo como vemos o continente (que alguns ainda confundem com um país) africano — um local desgraçado –, influencia, ainda hoje, no modo como vemos a população negra no Brasil. Diante disso, ele assevera:

[…] o problema efetivo do negro no Brasil é essencialmente psicológico e secundariamente econômico. Explico-me. Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país, como povo brasileiro, carece de significação falar de um problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo. O negro é povo, no Brasil. Não é um componente estranho de nossa demografia. Ao contrário, é a sua mais importante matriz demográfica. E este fato tem de ser erigido à categoria de valor, como o exige a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente. O negro no Brasil não é anedota, é um parâmetro da realidade nacional. A condição do negro no Brasil só é sociologicamente problemática em decorrência da alienação estética do próprio negro e da hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu”. (Guerreiro Ramos, O Problema do negro na sociologia brasileira)

Creio que essa constatação de Guerreiro Ramos — que, como eu disse, ainda é atual — serve de base para toda a percepção que se tem em torno do “problema do negro” no Brasil; dessa “alienação estética do próprio negro” — que diminuiu, mas ainda existe, sorrateiramente –, e da “hipercorreção estética do branco brasileiro”, que insiste em ver o negro como subalterno. E mais, isso repercute tanto da vitimização inoculada pela influência marxista quanto na inferiorização que vem do senso comum. Tal estado de coisas, como diz Guerreiro Ramos, “é uma forma sutil de agressão aos brasileiros de cor e, como tal, constitui-se num obstáculo para a formação de uma consciência da realidade étnica do país”. A nossa imaginação moral foi moldada por essa visão.

Mas isso é, essencialmente, racismo? Creio que não. Pois, apesar dos pesares, a convivência entre negros e brancos, no Brasil, é bastante pacífica, amistosa e fraterna. O racismo de fato, consciente e perverso, é um ponto fora da curva por aqui. Como disse Gilberto Freyre, numa entrevista em 1980: “não há pura democracia no Brasil, nem racial, nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo”. Nossa imaginação moral, mal formada e débil, não podem ser confundida com racismo. Se tudo é racismo até que se prove o contrário — e a tese praticamente hegemônica do racismo estrutural desemboca nisso — nada o é.

E uma última coisa, que, para mim, é a maior responsável pela situação social da população negra (e pobre) desse país: a marginalização, o descaso e o paternalismo produzidos pelo próprio Estado. Sofremos com um Estado que se propõe a solucionar tudo, mas não ajuda em nada; que toma dos mais pobres (via impostos) para oferecer aos mais ricos; que trabalha na lógica de um capitalismo de compadrio, do patrimonialismo descarado e da corrupção. Os paliativos que oferece — o assistencialismo — geram ainda mais dependência e pobreza. Os programas de inclusão são todos incapazes de cumprir a sua função sociocultural, antes criam ainda mais separatismos e conflitos.

O trabalho a ser realizado passa por criar uma cultura de integração, de compreensão das idiossincrasias da vida e da história, e não num ressentimento separatista, que exige reparação para males que são irreparáveis, que encontre culpados em confrades, inimigos em discordantes. Uma cultura que vislumbre os elementos fundamentais de seu povo, ponderando as diferenças amalgamadas nas três tradições que nos formaram — indígena, europeia e africana –, que reconheça o valor desse conjunto sem demonizar ou discriminar qualquer um de seus elementos sob perspectiva subjetiva ou supostamente elitista. É um trabalho longo, que exige paciência, perseverança e amor — sobretudo pelo país.

Minhas orações e minha solidariedade à família de Evaldo dos Santos Rosa; que Deus console os vossos corações.

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Paulo Cruz
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Written by Paulo Cruz

Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia e educação. Criador do curso online "O Brasil é um país racista?", em www.cursospaulocruz.com.br

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